Herdeira pode vender espólio de Kafka
Fonte: Folha de São Paulo
Estudiosos do escritor aguardam decisão de Hava Hoffe, que diz sofrer pressão "kafkiana" para entregar documentos
Filha de secretária de Max Brod, amigo do autor, não está disposta a dar material sem receber nada em troca; Israel quer manter arquivo
ETHAN BRONNER
DO "NEW YORK TIMES", EM TEL AVIV
O desejo final de Franz Kafka antes de sua morte, em 1924, o de que seus papéis fossem queimados, foi desafiado por seu amigo, o escritor Max Brod, em um momento famoso da mitologia literária. O mundo recebeu "O Castelo", "O Processo" e o adjetivo "kafkiano", e Brod ficou com os papéis.
Quando Brod fugiu de Praga para Tel Aviv no último trem antes da chegada dos nazistas, em 1939, carregava com ele uma mala cheia dos papéis de Kafka. Em Tel Aviv, contratou uma secretária e, quando morreu, em 1968, legou a ela os papéis remanescentes de Kafka, bem como seus documentos pessoais, testemunho de uma rica carreira cultural.
Por quase 40 anos, Esther Hoffe, a secretária, manteve em suspense o mundo dos estudiosos de Kafka e preservou os documentos em seu apartamento térreo em Spinoza Street, alguns deles empilhados sobre sua mesa de trabalho.
A última ocasião em que um estudioso foi autorizado a entrar no apartamento foi nos anos 80. Posteriormente, Hoffe vendeu o manuscrito de "O Processo" por US$ 2 milhões.
Desde que Hoffe morreu, em 2007, sua filha Hava, 74, vem indicando que tomará a decisão sobre os papéis. Embora o acervo de Kafka esteja preservado na República Tcheca, no Reino Unido e na Alemanha, é possível que restem documentos inéditos no apartamento.
Como sua mãe fazia, Hava Hoffe está mantendo os estudiosos e os dirigentes de arquivos insones, preocupados com a condição de cartas, diários, fotos e talvez obras inéditas. A questão não é só determinar quando e se Hoffe doará ou venderá os papéis dos quais ela e sua irmã mais velha, Ruth, são herdeiras. Também envolve determinar se será possível manter esse tesouro em Israel, dada a posição do país como baluarte da herança histórica do judaísmo.
"O material deveria ficar em Jerusalém", argumenta Mark Gerber, estudioso de Kafka e professor de literatura comparada na Universidade Ben Gurion, em Beersheba. "Brod se tornou sionista antes da Primeira Guerra Mundial, viveu e trabalhou aqui e está sepultado aqui. Menos conhecido é o fato de que Kafka era uma personalidade judaica completamente engajada e um escritor com muitas conexões estreitas com o sionismo e os judeus."
Judaísmo
A opinião está longe de ser unânime. Para muitos, os romances e contos de desespero existencial que Kafka escreveu em alemão parecem mais deliberadamente cosmopolitas do que vinculados a qualquer movimento nacionalista.
Um novo livro, que coincide com o 125º aniversário de nascimento de Kafka, "The Tremendous World I Have Inside My Head: Franz Kafka: A Biographical Essay" (o tremendo mundo que tenho na cabeça: Franz Kafka: um ensaio biográfico), de Louis Begley, argumenta que Kafka era profundamente ambivalente quanto à sua identidade judaica.
"Admiro o sionismo e me sinto nauseado por ele", afirmou Kafka, de acordo com Begley. E também: "O que tenho em comum com os judeus? Mal tenho algo em comum comigo mesmo e deveria ficar quietinho no meu canto, feliz por ainda poder respirar".
Alguns estudiosos israelenses apontam que papéis preciosos como os de Kafka e Brod talvez não possam nem mesmo ser tirados legalmente do país sem que os arquivos nacionais tenham tido a oportunidade de registrá-los e copiá-los. Mas Ofer Aderet, repórter do jornal "Haaretz" que escreveu artigos sobre os papéis de Kafka, diz que muitos suspeitam da possibilidade de que Esther Hoffe tenha burlado essa lei.
Sob cerco
Hava Hoffe tomou conta de sua mãe por anos e parece estar no comando do assunto. Evita publicidade e recusou todos os pedidos de entrevista feitos por jornalistas e estudiosos. Mas, em um encontro recente na rua, conversou comigo por dez minutos. Afirmou que não tem dinheiro nenhum e que não vê motivo para abrir mão da última propriedade que lhe resta -o arquivo literário de Max Brod. Deu a entender que se disporia a vender, mas não a doar os papéis. Perguntada se os escritos de Kafka estavam no apartamento, disse: "Você acha que somos idiotas assim?".
Ela descreveu a sensação de que todos a pressionavam, especialmente o Estado de Israel, para ceder os papéis ou decidir o futuro deles. Sente-se sob cerco, presa em uma teia, e, sem um pingo de ironia nos olhos azuis, acrescentou: "É verdadeiramente kafkiano".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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