"Deus me respeita quando eu trabalho. Mas me ama quando eu canto."

domingo, abril 06, 2008

Entre a Vida e a Morte

A banalização da morte banaliza a vida

Blog Reinaldo Azevedo

Nada escrevi até agora sobre o assassinato da menina Isabella Nardoni porque, como sabem, meu tema preferencial é a política, embora trate, amiúde, de assuntos relativos a comportamento e moral. Enfastia-me o excesso de notícias a respeito, numa espiral conhecida. O público demanda informação nova, a imprensa se mobiliza, alimenta a expectativa, que então cresce. Até a solução ou até que a coisa caia no esquecimento. É do jogo. Criticar a imprensa por isso é bobagem — desde que ela não avance em condenações prévias e sumárias. Parece-me que, em regra, há, desta feita, cuidado. Melhor assim.

Abordo aqui um aspecto aparentemente lateral à tragédia. Pai de duas meninas, é desnecessário dizer o horror que me assalta num caso assim — que não deve ser diferente do que vocês sentem. A VEJA desta semana traz uma capa sobre a persistência do Mal. O tema é caro às religiões e à moral. Pouco tenho a acrescentar, em essência, ao que está lá.

No dia 6 de outubro de 2006, já faz tempo, escrevi aqui: “Um cristão acredita em Deus, claro, mas sabe, como reafirmou o papa João Paulo 2º, que o demônio existe. O que é matéria de crença pode encontrar plena correspondência numa mentalidade agnóstica. Deus é a convicção, o princípio, o norte moral; o demônio é frouxidão da vontade, a ausência de limites, o relativismo sobre todas as coisas. Um cristão sabe que a manifestação mais clara do demônio — e, por favor, eliminem da imaginação aquela bobagens de possessão à moda do filme O Exorcista — é aquela que o leva a duvidar de si mesmo, dos seus valores; que põe uma névoa sobre os seus olhos e o impede de distinguir o certo do errado, porque, afinal, o certo de um sempre será o errado de outro, e vice-versa, e, enfim, tudo seria uma questão de ponto-de-vista.

Somos constantemente testados. Na semana passada, no artigo da VEJA, dei uma sapatada em Rousseau, aquele que acreditava que a gente é essencialmente bom, mas corrompido pela sociedade. Bobagem. Se fosse para debater essencialidades, a verdade estaria mais no oposto: somos maus. Os valores é que domam a nossa fúria. Por este ou aquele motivo, isso nem sempre acontece, e somos confrontados, então, com o horror — como agora, no caso do assassinato dessa menina; ou antes, no do garoto João Hélio. Aquele caso ainda parecia, apesar de tudo, mais compreensível: “impunidade”, disseram alguns (eu entre eles); “causas sociais”, disseram outros, os de sempre (que ainda acreditam, como Rousseau, em bondades inatas). Mas e Isabella? Nenhuma vulgata sociológica explica. Daí o nosso assombro. É como se, potencialmente ao menos, houvesse um infanticida em cada um de nós.

Ao desconforto essencial diante do fato, confesso, juntou-se um outro em mim. Já disse: parece lateral, mas pode estar no centro de tudo. Vi a Missa de Sétimo Dia da garota, as pessoas ali, todas de camiseta, com a imagem da menina estampada no peito. Uma coisa era pedir o fim da impunidade de assassinos no caso João Hélio. Mas e desta vez? O que se pede? Familiares, também a mãe, desempenharam a coreografia de uma suposta causa pública. Falando a uma rádio, ela revelou a intenção de criar uma ONG ou algo assim. Talvez estivesse serena; talvez vivesse, como qualquer um de nós diante da perda de um ente querido, o seu momento patético (veja o dicionário), mas pelo avesso, como quem é atravessado por uma dor de tal sorte insuportável, que não pode ser vivida senão com o alheamento. O tempo vai, então, se encarregando de realizar o evento trágico em sua real dimensão.

Especulo, como vêem, mas não afirmo nada. A pergunta que me fiz — na verdade, fiz a Dona Reinalda, no carro — foi a seguinte: “Reparou que parece não existir mais luto?” Tenho 46 anos e formação interiorana, apesar de ter deixado a minha cidade aos 9 meses. Mas, como Lope de Vega:
A mis soledades voy,
de mis soledades vengo,
porque para andar conmigo
me bastan mis pensamientos.

¡No sé qué tiene la aldea
donde vivo y donde muero,
que con venir de mí mismo
no puedo venir más lejos!

Pois bem. “No meu tempo”, viúvas andavam de preto por pelo menos um mês. Nas Missas de Sétimo Dia, todos iam de negro, a mesma cor do véu que cobria a cabeça das mulheres. Não só a vida era mais sacralizada — também a morte tinha um peso formidável. Era grave. E um silêncio pesaroso se adensava nas cerimônias — quase podíamos tocá-lo. “Morreu gente”. E isso doía na família dos nossos amigos, ou em nossa própria família, e em toda a comunidade. Por um tempo, a viúva, o viúvo, os país que perderam um filho ou os órfãos se convertiam em seres especiais, como se fossem, vejam que curioso, donatários de uma particular capacidade de perdão — de nos perdoar, também, já que não podíamos alcançar a extensão daquela dor. Era a particular nobreza dos que sofrem.

Isso acabou. As dores individuais não têm mais lugar e se convertem em causas. Até o sofrimento mais insuportável, o inominável, o que melhor realiza o sentido da palavra “nefando” — a perda de um filho —, transforma-sae numa demanda pública. A vida nunca valeu tão pouco porque, de fato, a morte se banalizou. Não é mais preciso sofrer. O sofrimento é inútil. Necessário é oferecer respostas coletivas e ser agente de uma proposta, de uma idéia, de uma tese.

A campanha da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) deste ano tem as palavras do Evangelho “Escolhe, pois, a vida”. De fato, é um convite que pode ser lido assim: “Respeita, pois, a morte” — porque é o outro extremo ausente da mensagem. A Igreja, com isso, combate o aborto, a eutanásia e, todos sabemos, a pesquisa com células tronco embrionárias. Já escrevi a respeito deste particular e do quão civilizadoras considero as restrições todas feitas pela Santa Sé.

Mais passa o tempo, mais me regozija o coração esta Igreja não abrir mão de seus princípios, não cedendo aos apelos e/ou à tentação de aderir ao pragmatismo que faz a vida valer tão pouco ou ser um vulto que cabe numa mera demanda coletiva. Se eu fosse um militante, diria assim: “É preciso (re)ssacralizar a vida” em toda a sua extensão e dimensão. E então a morte haverá de nos assombrar de novo". Mas eu não sou militante de coisa nenhuma. Só das minhas aflições.

Não tenho nada contra aqueles que transformam a sua dor em causas. Pode ser uma forma superior de enfrentar as dificuldades. Mas desconfio de uma sociedade que fez desaparecer o luto. A banalização da morte, ainda que por meio de sua espetacularização, nada mais é do que a banalização da vida. E uma das faces do triunfo do mal.
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