"Deus me respeita quando eu trabalho. Mas me ama quando eu canto."

sexta-feira, agosto 10, 2007

Eu Gênio? Nem tanto.


O “Cansei”, o “Fora Lula” e os erros de Jô Soares

Por Reinaldo Azevedo.

O “Cansei”, o “Fora Lula” e os erros de Jô Soares
Eu não tinha assistido ao programa de Jô Soares no fim da noite de ontem e início desta madrugada. Como chegaram muitos protestos de leitores criticando uma fala de Jô e uma performance do músico Derico, entrei no site do programa para saber, afinal, o que tinha acontecido. Quem quiser saber o motivo de tanta indignação pode clicar aqui. Basicamente, o apresentador passa um sabão no Movimento Cansei, trata-o de forma entre agressiva (“de um ridículo total”) e jocosa: “Cansei, cansei”, diz ele, supostamente imitando, de forma afetada, quem protesta.

Bem, vamos ver. Quando fala a sério, Jô Soares, entendo, confunde, o direito democrático de protestar com ameaça de golpe de estado, reproduzindo a acusação fácil do PT. Segundo Jô, as pessoas “não têm o direito de sair às ruas gritando ‘Fora Lula’”. E foi adiante: “Como fora? Quer trocar? Troca nas urnas”. Para ele, essas pessoas “não têm a menor noção do que é democracia” e “não podem sair à rua gritando isso”.

Em seguida, ele anuncia “Cauby Peixoto”. Entra, então, o músico Derico, com jeito meio afrescalhado — a imitação não chega a ser elegante — e canta uma paródia da música Bastidores, de Chico Buarque. A letra é esta:

Cansei, cansei,
A passeata não tem fim.
Eu me arrumei no meu jardim,Tomei um calmante, um excitante e um licor de jasmim.
Cantei, cantei,
Às oito e meia da manhã.
Meu tênis Prada eu calcei
E depois andei, desfilei, desfilei, caminhei...
Sentei, sentei,
Pra descansar de andar assim.
E num momento eu entendei
Que eu não recebi (sic) [SERIA PERCEBI?]
Por que eu estava aqui.Não me toquei que eu não devia mais gritar
Que o certo era eu esperar
A hora de votar, de votar, de votar...
Chorei, chorei,
Até ficar com dó de mim...

Falo já da letra. E também vou explicar por que humor a favor, como esse, infelizmente, não tem a menor graça. Quem investigar um pouco a história vai saber que humor a favor é coisa de bobo da corte. Antes que analise o espírito que animou a paródia, quero voltar à fala de Jô Soares.

Precedendo a crítica, ele fez um pequeno relato, segundo o qual muita gente o acusa e a seu programa de só criticar o governo. Ele confessou duas coisas:
1 – está sendo patrulhado;
2 – ele cedeu à patrulha.
Segundo o apresentador, sua produção convida freqüentemente representantes do governo para ir ao programa, mas eles declinam. E aí cita três pessoas, que classifica de “acima de qualquer suspeita”, que já aceitaram o convite: os ministros Fernando Haddad (Educação), José Gomes Temporão (Saúde) e Tarso Genro (Justiça). Seus elogios são dirigidos especialmente a este último.

Pois é, caro Jô. A história e suas ironias, não é mesmo? Um dos chefes da campanha “Fora FHC” foi ninguém menos do que o “acima de qualquer suspeita Tarso Genro”. A este você dispensa elogios; aos que gritam “Fora Lula”, o mau humor e o sarcasmo. Do que estou falando? No dia 19 de janeiro de 1999, passados, pois, 19 dias do início do segundo mandato de FHC, Tarso escreveu um artigo na Folha pregando a renúncia de FHC e a convocação de eleições gerais. No programa, Jô disse conhecer Tarso “há muito tempo, desde quando ele era prefeito de Porto Alegre”. Então deve se lembrar do artigo.

Tarso se arrependeu? Não, não. Continuava amigo de Jô quando, no dia 16 de maio do mesmo ano, reiterou o ponto de vista, justificando, quatro meses depois, em novo texto, o pedido de renúncia. O PT, com efeito, não acatou como lema oficial o “Fora FHC”, mas virou a sua palavra de ordem informal, dentro daquela ambigüidade que tão bem caracteriza o partido. E, no entanto, não se viu nenhuma indignação como aquela expressa por Jô Soares e por outros tantos. O PT e a CUT ocupavam com seus militantes a Esplanada dos Ministérios: “Fora FHC”. Jô era contra? Disse que era? Indagou Tarso a respeito quando este foi a seu programa? Já estive com o agora ministro depois disso em entrevista. Ele não se arrepende,

Equívocos
À diferença do que faz o apresentador com os que protestam, eu jamais direi o que ele “pode” e “não pode” falar. Eu escrevo o que bem entendo. Ele que faça o mesmo. É do jogo. Mas me reservo o dever de apontar as inverdades factuais e a fragilidade conceitual de seu discurso. Primeiro ao que é resoluta e absolutamente falso: a passeata “Fora Lula” nada tem a ver com o Movimento Cansei: trata-se de manifestações distintas. Um dos protestos conta com incentivadores conhecidos — entre eles, o empresário João Dória Jr. —; o outro, o que até agora reuniu mais gente, foi uma manifestação nascida de uma comunidade na Internet.

Jô quer saber o que eles pensam? Revelarei em outro post.

Ainda que Jô Soares queira equiparar os dois “Foras”, eles são distintos. Tarso Genro era um medalhão do principal partido de oposição — a oposição de agora não endossou os protestos. Ao contrário até: em uma das passeatas, alguém abriu uma bandeira do PSDB e foi obrigado, sob vaias, a enrolá-la. Os manifestantes estão, e com razão, um pouco “cansados” da política tradicional também. Ora, de que instrumentos dispõem os que protestam para depor Lula?

Ao misturar os dois movimentos, Jô Soares transferiu para uma passeata (ou passeatas) espontânea as suas restrições ao Movimento Cansei — embora estas, também, sejam discriminatórias e injustas. Jô não é ingênuo — é “Eugênio”. Todos os governantes do mundo, em algum momento, ouvem na rua o “fora” — como Bush já ouviu nos EUA. E isso não quer dizer que se esteja defendendo golpe do Estado. Não. O movimento nada tem de “ridículo”. São pessoas exercendo o seu direito de protestar. Fosse outro o governante, não Lula, e não haveria essa gritaria toda contra a manifestação.

Humor a favor
Jean de Santeuil (1630-1697) criou uma divisa para o busto de Arlequim, tornada depois um lema da comédia: “Castigat ridendo mores”. Ou “Rindo, moralizam-se os costumes” — o “castigare” também pode ser “castigar” mesmo, dando a entender que o humor é um instrumento poderoso de crítica social. A graça da comédia, convenham, está em atacar o statu quo. Se o humorista ou satirista elege como alvo os que se opõem ao poder dominante, sua crítica é só uma fração do discurso do poder. Infelizmente, é o caso da música de Derico. Trata-se de um conjunto de manifestações de má consciência.

A letra parte do princípio, como já disse, de que todos os que protestam contra Lula usam “tênis Prada” e são movidos pelo tédio enfatuado dos ricos. É mentira. Já lhes disse que grupos distintos estão sendo metidos no mesmo saco de gatos pardos. Esse é o primeiro erro. O outro é tentar cassar, ainda que dos chamados “ricos”, o direito de protestar. A indagação vai a Jô Soares, indagação apenas retórica, claro: por que a turma do “Cansei” não pode ir às ruas? Quem lhes cassou o direito político? Para poder fazer política, é preciso ter que salário, que condição social, que credenciais de sofrimento, que pedigree ideológico?

Jô Soares deve ter um dos maiores salários da TV brasileira — salário justo, claro, ou a Globo não pagaria, certo? Ele deve render o quanto lhe pagam, ou mais. A sua presença na mídia mais a sua competência de múltiplos talentos lhe garantem papel de destaque também no teatro, na literatura de entretenimento e, como se vê, na política. Se Jô se dá o direito de cassar da, vá lá, “turma de João Dória” a licença para fazer política, quem é que valida a licença do próprio Jô? Convenham: ele só não usa Prada se não quiser. Talvez o seu “bom-gostismo” o leve a escolher outras marcas, ainda mais caras e exclusivas. Por que ele acha que pode demonizar e ridicularizar o “Cansei” e o “Fora Lula”, mas ambos não podem protestar contra o presidente?

Eu respondo. Porque Jô faz parte dos milionários brasileiros que se consideram de esquerda. E, no Brasil, se você é esquerdista, tudo lhe é, então, permitido, seja você rico ou pobre. Raramente vejo o seu programa — no horário, costumo estar ocupado com o meu blog. Mas os leitores me mandam trechos de falas deste ou daquele. Os programas feitos com quatro jornalistas — as “Meninas do Jô” — têm sido, parece, bastantes críticos ao poder. Jô deve achar que as suas reservas a Lula são mais justas do que a de outros ricos. Afinal, ele tem boa consciência, ele é “do bem”. Mais: ele deve se considerar também “de esquerda”. A crítica, em suma, só é legítima se você for um deles.

Entendo: vivemos um momento da política em que a verdade é uma questão de disputa entre grupos influentes. Os princípios foram todos para o diabo. Criticado — e ele o confessou — pelos petistas por conta de seu suposto (e falso) antigovernismo, Jô decidiu entregar aos leões os que têm a grande ousadia de gritar, dentro das regras da democracia, “Fora Lula”. E, assim, em tese, ele equilibra o jogo e demonstra a sua isenção. Acabou demonizando gente que não tem como se defender para administrar a própria reputação. Não é uma coisa bonita de se fazer. O programa é dele. Não tenho nada com isso. Em vez de dar pito em quem protesta, não seria mais interessante saber quem são esses garotos que conseguem organizar um ato público via Internet? Isso é o novo. O discurso de Jô é velho.

Finalmente, não custa observar: quem, de fato, veste Prada, Jô, tem mais razões para aplaudir Lula do que para vaiá-lo. E você não precisa acreditar em mim. Acredite no balanço do Bradesco. Acredite no Balanço do Itaú. Acredite em Lula — segundo quem os ricos nunca ganharam tanto dinheiro no Brasil como agora. Taí uma das poucas verdades que ele disse desde que assumiu a Presidência.

Ah, sim: estou aqui de bermuda, camiseta e descalço. E tramando contra o Planalto. Meu prédio fica praticamente encostado ao de Jô. Como eu, ele também fica acordado de madrugada. Caso você ouça um "Fora Lula" às 3 da madruga, Jô, sou eu tentando dar um golpe de estado sozinho


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