"Deus me respeita quando eu trabalho. Mas me ama quando eu canto."

quarta-feira, setembro 05, 2007

Brilhante II

O adúltero da República

por Reinaldo Azevedo

A expectativa, todos sabemos, é que o Conselho de Ética do Senado aprove hoje o parecer dos senadores Renato Casagrande (PSB-ES) e Marisa Serrano (PSDB-MS) sustentando que o presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), quebrou o decoro parlamentar. Aprovado, segue para apreciação na Comissão de Constituição e Justiça e, dali, para o plenário, onde será submetido, na semana que vem, ao conjunto dos senadores, em votação secreta. A pantomima protagonizada nesta terça por Renan tinha como alvo esta votação. Ele dá como certa a derrota no Conselho de Ética, mas aposta que tem a maioria no plenário. Essa jornada, que vai chegando ao epílogo, expôs como nunca o padrão a que chegou a política brasileira.

Há dias, escrevi aqui um texto sobre a degradação do homem público e dos Poderes da República, em todas as suas esferas. Já não se obrigam mais os valentes a manter nem mesmo o jogo de aparências. Qualquer atitude na vida, mesmo o jogo amoroso entre os amantes, é pautado pelo senso de “decoro”. A palavra decorre do adjetivo latino “decorus” — o que fica bem, o que convém —, e este, por sua vez, é da mesma raiz de “decor”, a beleza propriamente, a física mesmo, a formosura. A história da palavra carrega, como se vê, a idéia da proporção de formas, da elegância.

E poucas coisas são, hoje, tão indecorosas quanto a atuação do senador Renan Calheiros, com sua pompa ridícula; com sua determinação de negar o que aos olhos de todos está escancarado; com sua retórica que mistura autocomiseração com ameaças, vitimização com agressões despropositadas. Renan é o cavalo que encarna uma conjuração de todos os maus espíritos da política brasileira. Do coronelismo decadente nordestino, de que o povo da região é a principal vítima, expõe o mandonismo, a rede de aliados e cupinchas locais a lhe arrumar falsos álibis, o sistema de compadrio que lhe serve de esbirro. Do descaramento petista, bastante treinado nas batalhas de Waldomiro Diniz, do mensalão e do dossiê fajuto, exibe a disposição de denunciar conspirações (falsas), de se defender atacando, de não hesitar um só momento em tentar recobrir o escuso com o ilegal, o ilegal com o imoral, o imoral com uma suposta causa política.

Não, senhores! Renan não é o chefe da máfia; é só a manifestação mesquinha, atrapalhada, caipira, provinciana, de uma crise que é bem mais profunda, que ameaça abrir um rombo na credibilidade do Senado e do Congresso Brasileiro. Absolvê-lo corresponde a incorporar na alma da Casa o lobismo bandoleiro, a mentira, a falta de qualquer escrúpulo na defesa do indefensável. Renan convida o Senado ao suicídio coletivo. Os que, eventualmente, pensam proteger-se protegendo-o, que fique claro, estão é marcando um encontro com a degola, mais cedo do que tarde. Renan é só um cadáver adiado — e, como tal, continuará a exalar o odor pútrido de uma biografia que se esgueirava nas sombras. Não é porque preferiu o catre ao leito que está em apuros. Mas porque preferiu o não-institucional ao institucional. Não é o Renan adúltero da vida privada que está em questão; mas o adúltero da República.

Os métodos a que recorre se mostram inteiros, como fica evidente, na guerra santa que decidiu deflagrar contra a revista VEJA. Não há qualquer ilegalidade ou irregularidade, como sabe a Anatel, no acordo comercial entre a TVA e a Telefonica. Nada. Mas notem bem: ainda que houvesse, jamais este moralista se dedicaria a combater a Abril não fossem as acusações não mais do que um modo de se defender. Que fique claro, que fique público: as primeiras referências de Renan ao caso vieram na forma de insinuações, coisa leve, típica de quem buscava uma negociação. Político de trajetória heterodoxa, empresário mais heterodoxo ainda, julgou que estava falando com iguais. Acreditou que, brandindo as armas do que acreditava ser uma boa chantagem, a revista fosse, como diria o filósofo Lewandowski, “AMACIAR” as coisas. Foi mais um de seus muitos erros. Foi outra aposta infeliz.

Jogo mais pesado
A estratégia, no entanto, não deve ser inteiramente debitada na sua conta. A disposição de confrontar "a" imprensa — em especial a revista VEJA e a TV Globo — nasce nos cantos mais atrasados do petismo. Mas pode "a" imprensa ser confrontada? Não. Ela não existe. O que é “a” imprensa? Estão todos os veículos metidos no mesmo saco de gatos? Terão todos eles a mesma linha editorial, os mesmos princípios, o mesmo entendimento do que é bom e do que é ruim para o Brasil? Eis aí um dos mitos estúpidos alimentados pelas esquerdas de modo geral, pelo petismo em particular — e, agora, por Renan Calheiros, para tentar salvar a própria pele.

Atacar "a" imprensa, da forma como se tem feito no Brasil, corresponde a atacar a liberdade de imprensa, uma vez que ela não existe como corporação, como voz política, como unidade. Se os veículos comungam de um credo comum, típico das sociedades democráticas, não quer dizer que estejam articuladas num complô. Acontece que essa fantasia é útil aos totalitários, aos ladrões, aos bandidos do colarinho branco, àqueles que querem se servir do estado e do governo. Agem os vagabundos como se não houvesse uma mídia que também lhes fosse favorável, que age na base do “quanto é?” para expedir suas sentenças capitais.

Não por acaso, figurões do petismo estão hoje metidos em operações mirabolantes para, justamente, ter o domínio de uma fatia da “mídia”. O que querem? Democracia? Não! Querem controle. Em recente programa de televisão, perguntaram a José Dirceu se ele trabalha para Carlos Slim, o magnata mexicano. A sua resposta não poderia ser mais eloqüente: “Não revelo os meus clientes”. Já se viu “consultor de empresa privada” — ele se diz um, com larga experiência, como se sabe — não revelar os clientes QUE TÊM, mas nunca se viu um deles manter em sigilo OS QUE NÃO TEM. Não custa lembrar que a maior parte das assinaturas da pretendida CPI contra a Abril é de petistas.

O estado brasileiro está sob o assalto de quadrilheiros maiores e menores. A novidade em relação ao banditismo habitual é que os bandoleiros de agora fingem ter uma “causa”. Que os senadores reflitam muito bem. Os olhos do Brasil estarão hoje no Conselho de Ética e, na semana que vem, no plenário da Casa. Não haverá sigilo que possa livrá-los da responsabilidade de manter no Senado quem o desrespeitou de modo aberto e continuado. A luta não é contra “a” imprensa, mas contra a indecência. Os veículos de comunicação que têm compromisso com a verdade continuarão, estejam certos, combatendo os excessos da liberdade com mais liberdade.

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